mardi 24 février 2015


 

D. Miguel Rafael António de Noronha,

1º conde de Paraty

Nasceu em Lisboa, Pena a 24 de Outubro de 1784 e faleceu em Lisboa, Ajuda, a 14 de Julho de 1849.


  1. Correspondência da época da Guerra Civil em Portugal, entre liberais e miguelistas (encontrada no seu acervo), parcialmente publicada na minha página do Facebook em Março de 2015.
  2. Extractos de livros e artigos onde o 1° Conde de Paraty é mencionado.



Para saber mais sobre D. Miguel Rafael pode consultar a página que criei na WIKIPEDIA, cujo endereço é:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Rafael_Ant%C3%B3nio_do_Carmo_de_Noronha_Abranches_Castelo_Branco

Apresentação da correspondência:


D. Pedro, Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, Regente em nome da Rainha, prepara nos Açores o desembarque do Mindelo.

 

Pensava eu que já tinha dado a volta aos acervos de família quando me aparece uma pasta com correspondência dirigida ao Conde de Paraty, meu tetravô. Porque têm um certo interesse histórico, decidi publicar as mais interessantes. Aqui estão elas:

Carta n° 1

Carta do Marquez de Palmela de 18 de Abril de 1832

MINISTÉRIO DO REINO

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Desejando Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, que O acompanhem na Sua próxima partida para S. Miguel todos os Pares do Reino, actualmente residentes nesta Ilha, cumpre-me assim participá-lo a V. Exa., para que, ficando ciente da intenção de Sua Majestade Imperial, haja V. Exa. de dirigir-se à Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha, a fim de se lhe indicarem os meios de transporte.
Deus guarde a V. Exa.
Paço em Angra
18 de Abril de 1832
(a) Marquez de Palmela
Ao Senhor Conde de Paraty, Par do Reino



 

Carta n° 2

Carta de 19 de Abril de 1932

MINISTÉRIO DA MARINHA

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Tenho a honra de participar a V. Exa. que nesta data se expede ordem ao Comandante do Barco de Vapor Superb, para receber a seu bordo a V. Exa., e os seus criados, prestando-lhe as comodidades que competem a V. Exa. na iminente qualidade de Par do Reino, em que Sua Majestade Imperial ordenou em data de ontem que V. Exa. o acompanhasse a S. Miguel.
Se por qualquer motivo V. Exa. preferir algum outro transporte do Estado, terei grande satisfação em o fazer aprontar, e cumprir a tal respeito as ordens de Sua Majestade Imperial.
Previno a V. Exa. que o barco de vapor Superb, está às ordens de Sua Exa. o General Conde de Vila Flor, e deve partir esta tarde para o seu destino.
Deus guarde a V. Exa.
Paço de Angra 19 de Abril de 1932
(a) Agostinho José Freire
Ao Senhor Conde de Paraty



 
Carta n° 3

Carta de 6 de Junho de 1832

MINISTÉRIO DA GUERRA - 2a REPARTIÇÃO

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, Regente, em nome da Rainha, Manda comunicar a V. Exa. que tendo intenção de emprega-lo no exercício correspondente à sua graduação da maneira que for mais conveniente ao bem do serviço;
Ordena que V. Exa. o acompanhe na Expedição do Exército Libertador que está a ponto de se fazer à vela.
Sua Majestade Imperial tem determinado para transporte de V. Exa. o Barco de Vapor Superb: abordo desta embarcação achará V. Exa. as comodidades que as circunstâncias permitem.
Deus Guarde a V. Exa.
Paço em Ponta Delgada 6 de Junho de 1832
(a) Agostinho José Freire (1)

Footnote:
(1) - Destacou-se na Guerra Peninsular, durante o vintismo e nos primeiros anos da Monarquia Constitucional Portuguesa. Ministro da Guerra e Ministro da Marinha (interino), por D. Pedro IV, Ministro do Reino, em 1835 e em 1836


Carta n° 4

REPARTIÇÃO DO AJUDANTE GENERAL

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Sua Excelência o Senhor Marechal de Campo, Conde de Vila Flor, Comandante em Chefe do Exército Libertador, na conformidade das Ordens de Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, Regente em nome da Rainha, ordena-me diga a Vossa Excelência que deve embarcar imediatamente a bordo do Patacho São Bernardo, a fim de ir reunir-se à Comissão de que é Presidente Manuel António Velez Caldeira Castelo Branco, da qual V. Exa. deve fazer parte.
Deus Guarde a V. Exa. = Porto vinte e oito de Julho de mil oitocentos trinta e dois =  Manuel José Mendes, Major —————-


Carta n° 5

MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS

= PASSAPORTE DE CORREIO=

Dom Pedro de Sousa Holstein, Marquez de Palmela, Par do Reino; Do Conselho de Estado; Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.

Pedimos a todos os Vice-Reis, Governadores, oficiais militares, e civis, tanto nacionais, como Estrangeiros, que deixem passar livre, e seguramente, para Inglaterra, ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conde de Paraty, Par do Reino, que vai encarregado de Despachos do Governo de Sua Majestade Fidelíssima para o seu Enviado Extraordinário, e Ministro Plenipotenciário na Corte de Londres; E para que lhe não ponham impedimento no seu transito, mandei passar o presente. Levando em sua companhia um criado.

Dado no Porto em 15 de Outubro de 1832.

(a) Marquez de Palmela

Por ordem
(a) José Balbino de Barbosa Araújo



Carta n° 6

MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Manda Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, Regente em nome da Rainha que Vossa Excelência embarque para Inglaterra a bordo do Paquete; e que em Falmouth tome imediatamente a Posta para Londres, a fim de entregar ao Ministro de Sua Majestade Fidelíssima naquela Corte os Maços, que leva para Ele; devendo em seguida passar sem perda de tempo a Paris, para fazer igual entrega ao Ministro de Portugal; afim como a sua Majestade Imperial, a Duquesa de Bragança, as Cartas que lhe dirige Seu Augusto Esposo; devendo regressar para esta Cidade quando a sua Comissão se achar terminada; e permitindo Sua Majestade Imperial, que Vossa Excelência se demore alguns dias em Paris com a sua família.

= Deus guarde a Vossa Excelência =

Paço no Porto em dezoito de Outubro de mil oitocentos e trinta e dois

(a) Marquez de Palmela


Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conde de Paraty.

“Passaporte”

MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS



= PASSAPORTE DE CORREIO =


Dom Pedro de Sousa Holstein, Marquez de Palmela, Par do Reino; Do Conselho de Estado; Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.


Pedimos a todos os Vice-Reis, Governadores, oficiais militares, e civis, tanto nacionais, como Estrangeiros, que deixem passar livre, e seguramente, para Inglaterra, ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conde de Paraty, Par do Reino, que vai encarregado de Despachos do Governo de Sua Majestade Fidelíssima para o seu Enviado Extraordinário, e Ministro Plenipotenciário na Corte de Londres; E para que lhe não ponham impedimento no seu transito, mandei passar o presente. Levando em sua companhia um criado.

Dado no Porto em 15 de Outubro de 1832.

(a) Marquez de Palmela



Por ordem de Sua Excelência,

(a) José Balbino de Barbosa Araújo “Lugar do selo das Armas Consulares”

Vu à l’Ambassade de France. Bon pour aller à Paris.

Londres le 26 Octobre 1832

Le Secrétaire d’Ambassade = Le Consul

“Lugar do selo das Armas do Consulado Francês”

——————————————

Numero cinco mil, e setenta, e oito
= Vu pour Paris = Calais le 27 Octobre 1832 = Pour le Maire = Detten

“Lugar do selo das Armas” —————- E trasladado o referido concertei com o próprio, a que me reporto, e entreguei.


Carta n° 7

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Tenho a honra de acusar a recepção do Oficio, que Vossa Excelência me dirigiu ontem trinta do corrente, participando-me achar-se pronto para regressar para o Porto. Farei subir à Presença de Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, por via do Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, as muito louváveis disposições de Vossa Excelência, devendo porem desde já prevenir a Vossa Excelência, que eu não recebi ordem alguma para o reexpedir.

Deus Guarde a Vossa Excelência.

Paris trinta de Outubro de mil oitocentos e trinta e dois.

(a) Dom Francisco de Almeida


Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conde de Paraty

———————————————————

E trasladado o referido………

(a) João Caetano Correia


Carta n° 8 (mesma carta que a precedente mas sem o selo)





Carta n° 9 (do Duque de Palmela)

Londres 8 de Fevereiro 1833

Meu amigo do coração

Recebi há poucos dias a tua carta de 28 de Janeiro e anteriormente tinha recebido outras às quais não respondi porque me pareceu que não havia urgência e que não se te daria de descansar algum tempo no seio da tua família.

Agora saberão que não depende de mim o transmitir-te ordens nenhumas e portanto se as quiseres solicitar deves dirigir-te ao Ministro de Sua Majestade no Porto.

Enquanto for a tua carta e vier a resposta é provável que aconteçam sucessos para a nossa causa.
Espero ver-te brevemente em Paris e peço-te entretanto que acredites a minha confiança.

Teu

Amigo, etc.

Palmela



Carta n° 10

Carta de José Balbino de Barbosa Araújo - Porto 16 de Março de 1833

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Quero provar a V. Exa. que eu cumpro fielmente as comissões de que me encarrego, e por isso pego hoje na pena para ter a honra de participar a V. Exa. que logo que aqui cheguei no dia 13 falei ao nosso digno Duque da Terceira no que V. Exa. me encarregou, e que imediatamente assentamos no que havia a fazer; o Duque incumbir-se de falar a Sua Majestade Imperial e de lhe repetir os desejos de V. Exa., e assim o fez ontem; Sua Majestade Imperial louvando muito os sentimentos e procedimento de V. Exa. decidiu que V. Exa. se demorasse em Paris para ter a honra de acompanhar Sua Majestade Fidelíssima, quando vier para este Reino, e que Deus há de permitir que brevemente veremos unificado.
O nosso Duque da Terceira promete escrever a V. Exa. comunicando-lhe esta resolução de Sua Majestade Imperial, e portanto nada mais me cumpre acrescentar.

Os nossos negócios apresentam muito favorável aspecto, e aqui tudo está cheio de entusiasmo, de animação e de coragem.

O inimigo no dia 4 levou uma esfrega monstra, e creio que brevemente o nosso bravo Exército lhe irá dar nova lição, e acabar por uma vez com uma rebelião de que por fortuna não havia exemplo na história Portuguesa.

Desejo que V. Exa., e a Exma. Sra. Condessa, e os seus queridos filhos continuem a passar bem, a todos me recomendo respeitosamente, e concluo por me oferecer para tudo o mais que V. Exa. julgar eu lhe posso servir pois sou com toda a consideração,

De V. Exa. muito obrigado e fiel criado

(a) José Balbino de Barbosa Araújo




Carta n° 11

Nomeações do Conde de Paraty

Senhor

O Conde de Paraty, Par do Reino, em cumprimento do anúncio inserido na “Chronica” de 9 do corrente mês de Dezembro de 1833, pela Repartição Central do Tribunal do Tesouro Publico, leva ao conhecimento do mesmo Tribunal: que foi nomeado Conselheiro da Fazenda do Rio de Janeiro, por Decreto de 6 de Fevereiro de 1818, de que se lhe passou Carta em 18 do mesmo mês e ano.

Que foi depois transferido para o Conselho da Dazenda de Portugal, e isto por Decreto de 25 de Julho de 1823; Apostilha de 13 de Agosto do mesmo ano, com o ordenado de 2.000$000.

Que foi nomeado Deputado da Junta de Administração do Tabaco, por Decreto de 1 de Fevereiro de 1826, de que se lhe passou Alvará, em 20 do mesmo mês e ano, com o ordenado de 600$000, cujos Decretos se acham registados, e seus Assentamentos nos Livros respectivos, tanto do extinto Tribunal do Conselho da Fazenda, assim como da extinta Junta do Tabaco.
 





Carta n° 12


António José de Sousa Manuel Menezes Severim e Noronha, Conde de Vila Flor, Marquez do mesmo Título 1, Duque da Terceira 2, Gentil Homem da Câmara de Sua Majestade Fidelíssima, Grão Cruz da Antiga e Muito Nobre Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito, e das Ordens de S. Bento de Avis, e Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Comendador da Ordem de Cristo, condecorado com a Medalha de Comando em Batalha, e com a Cruz de Seis Campanhas da Guerra Peninsular, Governador da Torre de São Vicente de Belém, Marechal do Exército, e Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança Comandante em Chefe do Exército Libertador.

—————————

Atesto que o Exmo. Conde de Paraty Coronel de Cavalaria esteve às minhas ordens desde o desembarque do Exército Libertador então do meu Comando até ao dia 19 de Outubro de 1832, dia em que por Sua Majestade Imperal o Duque de Bragança, Regente em Nome da Rainha, foi mandado em diligência do Real Serviço a Inglaterra, em todo este decurso de tempo se houve com a maior actividade e inteligência no desempenho daquilo do que o encarreguei, assistindo aos Combates, e sortidas que tiveram lugar durante aquela época, portando-se sempre com muito Valor, e fazendo bem conhecido o decidido amor que consagra às instituições que felizmente nos regem. E para constar mandei passar a presente que assinei e selei com o selo das minhas armas.

Lisboa 17 de Junho de 1834.

(a) Duque da Terceira


Foot notes:

1 - Pertencente à mais genuína alta nobreza portuguesa, teve múltiplos cargos e honrarias na corte, entre as quais, moço fidalgo da rainha D. Maria I, gentil-homem da câmara de el-rei D. João VI, copeiro-mor e estribeiro-mor. Exerceu as funções de marechal de campo, comandante-em-chefe do Exército Português, conselheiro de Estado, par do Reino, tendo por quatro vezes (1836, 1851, 1842-1846 e 1859-1860) exercido o cargo de Presidente do Conselho de Ministros. Foi o 10.º capitão-general dos Açores, ali presidindo à Regência de Angra durante a fase inicial das guerras liberais.

2 - 1° Duque da Terceira em 8 de Novembro de 1832 e 1° Marquez de Vila Flor em 14 de Janeiro de 1833.
Herói das Guerras liberais, o sétimo conde de Vila Flor recebeu a mais alta distinção nobiliárquica, a par da ascensão à dignidade de Marechal, em virtude da denodada resistência que promoveu na ilha Terceira. Condestável (temporário) fez toda a campanha do Algarve, tendo entrado em Lisboa no dia 24 de Julho à cabeça das forças liberais. Vencedor de batalha de Asseisseira, decisiva para a vitória da causa liberal, assinava pouco depois a Convenção de Évora-Monte, em representação de Dom Pedro, duque de Bragança e Regente. 




Carta n° 13


Carta do Marquez de Resende ao Conde de Paraty - 25 de Junho de 1836

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Sua Majestade Imperial a Senhora Duquesa de Bragança encarregou-me de convidar V. Exa. e à Exma. Sra. Condessa de Paraty para jantarem com Sua Majestade Imperial depois de amanhã 27 do corrente pelas seis horas da tarde.

Aproveito com sumo prazer esta ocasião de repetir a V. Exa. os rendidos protestos da minha estima e mais subida consideração.

Deus guarde a V. Exa.

Palácio de Santa Marta

25 de Junho de 1836.


(a) Marquez de Resende


Il.mo e Ex.mo S.r  Conde de Paraty






Extractos de diversos livros em que o 1° Conde de Paraty é mencionado:



No livro "Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna (D. José Trasimundo Mascarenhas Barreto):


Pg 158

O Marquez desde 1813 que estava no Rio de Janeiro, tinha feito parte da Guerra Peninsular, como Ajudante de campo do Marechal Beresford, e, conquanto não tivesse ainda trinta annos, era já casado terceira vez, sendo sua mulher uma filha de meu tio e tutor, o Marquez de Bellas, a actual Marqueza de Angeja, viuva. A sua segunda mulher, a Marqueza de Angeja, D. Juliana, era a irmã mais velha de minha mulher.
Minha futura sogra recebeu um grande choque com a vista do Marquez, de quem era verdadeiramente amiga, porque lhe avivou a saudade da filha que perdera, por quem tinha grande extremo.
O Marechal Beresford, que estava então no Brazil, fazia, segundo constava, as mais sensatas observações contra as repetidas requisições de gente e de dinheiro, mas inutilmente.
O General Marquez de Angeja partiu com a nova expedição do seu comando para différentes portos do Brazil.
Durante o lucto da Rainha D. Maria I, fizeram-se os casamentos das Senhoras Infantas D. Maria Izabel com seu tio, El-Rei Fernando Vil de Hespanha, e D. Maria Francisca com outro tio, o Infante D. Carlos, que ha pouco morreu, sendo pretendente á coroa de Hespanha.
Uma bela esquadra, comandada pelo Almirante Farina, conduziu as Princesas a Cadiz, e vários personagens da Corte do Rio de Janeiro as acompanharam. O Marquez de Vallada, pae do actual, foi nomeado, por esta occasião, Mordomo-Mor de Suas Altezas, e a viuva do Conde de Linhares D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de origem piemonteza, acompanhou as Princesas, como Camareira-Mor.
O Marquez trouxe na sua companhia a sua jovem e interessante mulher, de quem fazia uma diferença de idade de mais de cinquenta anos, porque ele passava já dos setenta. É hoje minha cunhada, tendo casado em segundas núpcias com o Conde da Taipa. Também o acompanhava sua filha, então viúva do Conde do Barreiro, e que mais tarde casou com o Conde de Paraty.
As festas por estes casamentos, tanto em Cadiz, como em Madrid, foram magnificas. Não as descrevo, porque não estou no caso de o fazer, mas ellas vêem descriptas na Gazeta de Lisboa da época.

Pg 237

Parte II — 1818 a 1824                                                            

VII


Medidas de precaução contra D. João VI. — Desterro dos Condes de Palmella e de Paraty e do Visconde de Villa Nova. — O Ministério. — Os patriotas. — Borges Carneiro. — O General Sepúlveda. — O Ministério organisado a bordo por D. João VI. — Silvestre Pinheiro. — Medidas de segurança.— Visita do General Sepúlveda a bordo da nau D. João VI. — Atitude da Rainha Carlota. — As Princesas. — O Marquez de Rezende e a velha Marqueza de S. Miguel. — A familia Valladares. — O Padre-Mestre Doutel.— Desembarque. — Regozijo popular. — As sociedades secretas. — O discurso da Coroa. —Francisco Manuel Trigoso. — El-Rei recolhe-se a Queluz.

Julho de 1822 (Regresso da Corte a Lisboa - Entrada no Tejo) 

Enquanto Sua Magestade entrava o Tejo e eu presenceava este bello espectáculo, as Cortes funccionavam em sessão secreta e o Governo estava em sessão permanente. A famosa Associação Patriótica achava-se reunida e as sociedades secretas nos seus trabalhos occultos. A influencia destas para com os corpos do Estado e os receios que os mesmos corpos tinham do Rei e da alta aristocracia, produziram as medidas mais humilhantes, para uma testa coroada, que até hoje teem apparecido em uma monarchia.
Decidiram que El-Rei não desembarcasse senão vinte e quatro horas depois, que fosse acompanhado, ou antes vigiado, por alguns membros da Regência e por uma deputação da Camara dos Deputados. O General da Província, Leite, de quem também desconfiavam, foi mandado para bordo da nau D. João VI e, para nada faltar, intimaram a um dos Camaristas que estava de serviço a Sua Magestade e seu confidente, o Conde de Parati, para deixar a nau e sahir immediatamente da capital, indo residir para Thomar. Egual ordem recebeu o Porteiro da Camara, Lobato, Visconde de Villa Nova, por quem El-Rei tinha a maior sympathia, sendo mandado residir em uma villa, de que me não recorda o nome, a alguma distancia de Lisboa.
Para cumulo dos absurdos, o Conde de Palmella, o mais illustrado dos aristocratas portuguezes, que tinha representado tão dignamente o seu paiz no Congresso de Vienna, que, já naquella época, passava em toda a Europa, por um homem verdadeiramente constitucional, e que vinha a bordo dum dos navios da esquadra, foi intimado para ir residir na villa de Borba, no Alemtejo.
Finalmente o Rei e a Corte foram olhados, pelos indivíduos que dirigiam os negócios públicos naquella época, como os mais perigosos para a pátria e como individuos que tinham commettido crimes tão atrozes, durante a sua residência no Brazil, que dificilmente lhes eram relevados.
Estou certo de que a maioria do Congresso e do Governo tomava taes medidas contra a sua convicção e vontade. Como se é levado a taes extremos só pode comprehender quem tem pre-senceado crises tão melindrosas como a de que tenho fallado.
A maioria, tanto do Congresso, como do Governo, era excellente. Dois dos Secretários de Estado da Regência, de quem fui amigo até á sua morte, eram dotados de excellente coração e muita honradez, mas duma ligeireza pouco commum.
O Ministro da Justiça, o bem conhecido José da Silva Carvalho, era o ministro influente e o instrumento, então, das sociedades secretas, de que era o chefe. O Ministro dos Negócios Estrangeiros era um moço que apenas teria trinta annos, Anselmo José Braamcamp[1], irmão do Barão de Sobral, honrado cavalheiro, de maneiras muito elegantes, conhecendo o mundo, porque muito tinha viajado, e duma respeitável família, bem conhecida no paiz, mas que estava longe de pertencer á alta aristocracia, o que fazia com que ao jovem ministro fizesse sombra aquella classe a que elle desejava pertencer, mas de que o destino o tinha posto longe. Era elle também um instrumento fiel dos clubs a que pertencia. A sua elevação a ministro fez uma triste impressão, porque elle não tinha nem capacidade nem serviços para ser elevado a tão eminente cargo. O espirituoso Francisco Dias dizia que tinha sido um erro da imprensa, quando imprimiu o decreto da nomea-ção, porque, em logar de dizer Ministro dos Negócios Estrangeiros, devia dizer Ministro Estrangeiro nos Negócios; e com este titulo foi sempre conhecido, emquanto esteve ministro.



[1] Jan Braamcamp, que se estabeleceu em Lisboa por voltas de 1720, trisavô da minha trisavó (Júlia Adelaide Braamcamp de Almeida Castelo-Branco, mãe da minha bisavó Isabel de Sousa Mourão e Vasconcelos – da Casa de Mateus).
O seu filho Hermano José Braamcamp foi, em Portugal:
  • Ministro Residente do Rei da Prússia na Corte de Lisboa (apresentou as credenciais a 28.6.1751);
Cavaleiro da ordem de Cristo (Carta de 24.1.1744)
Anselmo era o irmão mais novo de Hermano José Braamcamp.

Pg 243

Parte II—1810 a 1824                                                                      

como em uma camara óptica, mas os companheiros do Monarcha não viam com bons olhos os Ajudantes de campo do General revolucionário.
Junto á porta da camara, residência do Rei, via uma guarda d'honra, composta de jovens officiaes de Cavallaria e da Marinha Real, elegantemente fardados, e um d'elles de notável belleza. Estes jovens estão hoje quasi todos carecas, como eu. Entre elles estavam Nuno de Mendoça, hoje Marquez de Loulé e Presidente de Conselho de Ministros, e os actuaes Marquez de Vianna e Conde de Valladares[1].
Vi também três indivíduos com grande traje de corte, firmes como três estatuas, e que eu, ao principio, julguei que eram três figuras da China que ornavam a entrada da camará de Sua Ma-gestade. A physionomia, o tamanho pigmeu, a gordura e o vestuário dum eram o de todos e, tão firmes como um penedo, parecia que não tinham olhos, pois eram elles tão pequenos e estavam tão cerrados, que não se viam. Repentinamente, El-Rei dirigiu-se a um d'elles: a estatua moveu-se, fez uma cortezia de tesoura e foi buscar um copo d'agua; eu exclamei comigo: Então aquillo é gente!; o que, pouco depois, os outros dois me confirmaram, cuspindo um e espirrando o outro.
A minha curiosidade exaltou-se e fez-me romper o silencio, perguntando a um velho officiai superior de Marinha quem eram aquelles fidalgos que estavam próximos do Rei, ao que elle me respondeu: É a família Valladares, são três irmãos[2]. Observando-lhe eu que não sabia como se distinguiam, porque eu, do sitio onde estava, confundi uns com os outros, tão semelhantes eram, replicou-me: El-Rei lambem os não distinguia, mas fez o que as saloias fazem aos frangos: põem-lhes uma calça; deu a cada um d'elles uma gran-cruz differente. Aqui estou eu, ha três meses, com Suas Excellencias a bordo e não os conheço senão pela calça! [3]Soube, depois, que o meu informador fora o sarcástico Capitão de Mar e Guerra, Pilatos, muito conhecido.
O meu General foi recebido por Sua Magestade com muita frieza: pouco ou nada lhe disse, contentando-se em lhe dar a mão a beijar. Entre os cortesãos recemchegados tinha elle muitos amigos que o festejaram, o que o animou e poz á sua vontade.



[1] D. Pedro António de Noronha, 2° irmão do 1° Conde de Paraty
[2] Quanto a mim (MPC) “os 3 Valadares” seriam D. Alvaro de Noronha (Marquês de Torres Novas), D. Pedro António de Noronha (Conde de Valadares) e o irmão mais novo D. Antonio de Noronha, irmãos do Conde de Paraty; penso isto porque o Conde de Paraty tinha sido obrigado a deixar a nau e a exilar-se em Tomar.
[3] Os três irmãos Valadares são o Marquês de Torres Novas, o Conde de Valadares e o 1° Conde de Paraty.

Pg 386 - 387

Parte II – 1818 a 1824                                                                          
  
A mim valia-me a vizinhança da minha boa tia Bellas, onde ia tomar diariamente a minha refeição.
O jantar era o mais rápido possível; comia-se em vinte minutos, porque tínhamos de ir beijar a mão a Sua Magestade El-Rei, na sua passagem para o jantar, que era ás três horas, e receber então as ordens do Camarista para o passeio.
Collocavamo-nos entre a casa de jantar e uma escada por onde Sua Magestade havia de descer e que estava fechada com um grande reposteiro; sentíamos descer o Rei com a sua Corte, e, só quando estava muito próximo, se abria o reposteiro e, pondo nós o joelho em terra, procurávamos beijar-lhe a mão.
Uma vez ouvi eu ao bom do Rei dar ordens ao seu Camarista, das quaes muitos esforços fiz para não rir, porque Sua Magestade, fallando de si, parecia fallar de terceira pessoa. Dizia elle ao Marquez de Torres Novas: E necessário prevenir o capitão da guarda que não deixe tocar o clarim, quando passar pela frente do Real Palácio, porque accorda Sua Magestade quando está dormindo a sesta.
Ás quatro horas o estado real ia para a porta interna que do Palácio deita para o jardim e a guarda seguia-o de perto e alli se collocava, esperando muito ou pouco, segundo se prolongava a sesta de Sua Magestade.
Quando a Real Família ia passear reunida, acompanhava-a a guarda toda, mas, se se dividia, o capitão acompanhava El-Rei e o alferes as Infantas.
O estado era numeroso; Sua Magestade ia numa carruagem a quatro muares, precedido de dois cadetes ou batedores e seguido do General Domingos Bernardino, seu Ajudante de Campo, a cavalo; o capitão da guarda, à portinhola, seguido de parte da guarda, indo o alferes à portinhola da carruagem  das Infantas, seguido do resto da força.
O Camarista ia numa sege e noutra o Mordomo-Mor, Marquês de Torres Novas[1], e o Conde de Paraty, que seguiam seu Amo como amadores, e, por ultimo, o particular Bruschy e o cirurgião Aguiar, seguidos dum azemel, montado num bello macho, que levava, coberta com um pano de veludo escarlate, a tripeça de Sua Majestade.
Uma das coisas que mais divertia El-Rei era  não dizer ao moço da estribeira nem aos batedores a direcção que deviam tomar. Quando eles olhavam para a retaguarda, para  receber ordens, Sua Majestade pantominava de tal maneira, que eles não percebiam.
Uma vez, seguindo pela estrada de Sacavém, Sua Magestade, de repente, mandou tomar por uma travessa; os batedores, que eram os cadetes Conde de Alva e de S. Vicente, e o General Domingos Bernardino perderam-se, e El-Rei chegou á Quinta do Cabeço, do Visconde de Santarém, apeou-se no pateo, perdido de riso, com as mãos atraz das costas, sendo applaudida a graça de Sua Magestade pelos dois amigos Paraty e Torres Novas, que faziam todos os esforços para acompanhar na hilaridade o seu augusto Amo.
Ei-Rei não gostava de chegar ao Paço antes de luzes accesas. Depois de se occupar de negócios com os seus Ministros, dava a mão a beijar a todos os indivíduos que estavam nas salas, onde o concurso era sempre numeroso, e a recepção nunca acabava antes das onze horas, o que não era muito agradável para nós outros, officiaes de serviço, que estávamos cheios de cansaço, de somno e de poeira, e de fome os que não tinham, como eu, uma boa tia na vizinhança.
Nas manhãs da Semana Santa ia Sua Magestade á capella da Ajuda, onde havia festa de Corte. El-Rei era muito exacto e partia á hora marcada, mas, quasi sempre, só com os seus Camaristas e parte da guarda, porque Suas Altezas demoravam-se, por capricho, alguns minutos e, depois, partindo por outro caminho, queriam chegar ao mesmo tempo que El-Rei.
Tendo a honra de as acompanhar, cheguei alli algumas vezes só com dois soldados, deixando o resto da força ou estendidos no chão, na Calçada das Necessidades e da Tapada, ou com os cavallos á mão, desferrados. Sua Alteza, a Senhora Infanta D. Izabel Maria, ainda ha pouco se lembrou d'estas scenas.
Todas as cerimonias na Patriarchal da Ajuda se faziam com uma pompa tal, que de nada me admirei quando assisti ás da Capella Sixtina em Roma.
O lava-pés na sala do Palácio da Ajuda nada tinha a invejar ao que o Santo Padre fazia nas salas do Vaticano.
El-Rei tinha a mania das festas de egreja, assistia ás da capella da Bemposta antes de ir para as da Patriarchal, e, depois de matinas na Bemposta, que duravam até á meia noite, porque eram de bella musica, recolhia-se aos seus quartos, onde começava, com os seus particulares amigos e Camaristas, as suas matinas, psalmeando e cantando responsorios até ao romper do dia,



[1] O Marquês de Torres Novas é o irmão mais velho do 1° Conde de Paraty

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Parte II —1818 a 1824                                                                         

1824 – A “Abrilada” (ndr: 30/04/1824)

O Visconde de Juromenha nada exigiu de nós e deu-nos ampla protecção. O Brigadeiro Azevedo foi o nosso bom camarada e companheiro e não o nosso carcereiro.
Subindo á primeira bateria, para entrar na sala regia, encontrei mais de oitenta oficiaes de todas as graduações : o meu amigo General Azeredo, que morreu Conde de Samodães, os Coronéis Condes da Taipa, Barão de Sabroso, e muitos outros que seria enfadonho nomear, entre elles muitos officiaes do meu Regimento, com quem eu mais convivia e que eram julgados desaffectos ao systema absoluto.
Foi depois de abraçar todos estes amigos e companheiros de infortúnio que me orientei sobre as occorrencias que se deram emquanto estava no baile do Embaixador de Inglaterra e depois de sahir d'alli.
Os Ministros foram prevenidos de que se tentava contra a ordem publica e encarregaram o Intendente Geral da Policia, Barão de Rendufe, de tomar todas as medidas preventivas, d'accordo com o Commandante da Guarda Real da Policia, não se dirigindo ao Paço para não assustar El-Rei.
Sahiram do baile para suas casas. O primeiro Ministro morava no Arco do Cego que, pelo caminho novo, fica a pequena distancia da porta do jardim do Palácio da Bemposta. O Coronel da Policia collocou uma força de cavallaria, desde a residência do Ministro até á porta da residência real, para que, no caso dalguma occorrencia, o Ministro podesse, com facilidade e segurança, dirigir-se ao Paço.
Entretanto, o Coronel da Guarda Real da Policia e muitos outros Commandantes de Corpos foram surprehendidos e presos á ordem do Infante (D. Miguel I) e conduzidos à Torre de Belém ou ao Castello.
Os Camaristas Conde de Villa Flor e de Paraty tiveram as suas casas invadidas pelos satellites de D. Miguel, armados, e foram conduzidos ao Castello, juntamente com as suas mulheres.
Pelos quartéis distribuiam-se proclamações, que também se affixaram nas esquinas, dizendo que Sua Magestade tinha escapado milagrosamente de ser assassinado pelos seus Camaristas Condes de Paraty e de Villa Flor, dirigidos pela maçonaria.
O Major da Policia foi prevenir o primeiro Ministro, Conde de Subserra, de todos estes acontecimentos, assegurando-lhe que estava guardado o caminho para o Paço, para onde podia dirigir-se com toda a confiança e que elle o acompanharia.

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Parte II - 1818 a 1824                                                                           

Como General mais graduado do que o General Azevedo, tomou elle o commando de toda a força e tratou, desde logo, de nos humilhar. Conhecia-se-lhe no rosto o prazer que tinha pela nossa desgraça. Entre os presos havia vários Generaes e alguns mais graduados do que elle e seus antigos camaradas, mas nem, ao menos, lhes fallou, parecendo que nunca os tinha visto. Mal nos deixou acabar a parca refeição que tínhamos podido obter e fez-nos pôr logo a caminho pela estrada de Mafra. Anoitecendo, foram taes as precauções que tomou com o receio de que nos evadíssemos, que demorou a jornada, chegando, já alta noite, a Mafra.
Fomos aquartelados em casa do Marquez de Ponte de Lima (José Maria Xavier de Lima Vasconcelos e Brito Nogueira), tendo por cama os soalhos e ladrilhos da casa, e conseguindo, com grande difficuldade, alguma agua para nos mitigar a sede, mas nenhum alimento, apesar dos offerecimentos, que fizemos, de dinheiro. Tal era a indisposição dos habitantes de Mafra contra nós,  que  ninguém quiz attender nem annuir aos nossos pedidos.
Ao romper do dia partimos e, atravessando a praça do Palácio, lembrei-me de que havia dezaseis annos que eu, pela primeira vez, alli tinha estado para beijar a mão e agradecer ao Principe Regente o titulo de Marquez e as muitas graças que me fez, quando tive a infelicidade de perder meu Pae. Todas estas graças me parecia estavam próximas a acabar, porque todas as probabilidades eram de que seriamos assassinados antes de entrarmos na praça de Peniche.
O caminho de Mafra para Torres Vedras era o mais incommodo que se pode imaginar, cheio de precipícios, principalmente para quem viajava em seje. Muitos de nós pedimos para fazer a marcha a pé, mas não fomos attendidos.
Quando entravamos em Torres Vedras, pela estrada de Mafra, chegou outro comboio, muito mais numeroso, pela estrada de Lisboa. Eram os presos do Castello e do Limoeiro que também iam para Peniche, escoltados por um batalhão de Caçadores e pelo Regimento 12 de Cavallaria, commandando a força o General Álvaro da Fonseca Coutinho e Povoas. No numero dos presos estavam o Conde e a Condessa de Villa Flor, Conde e Condessa de Paraty, Visconde de Santa Martha, Visconde de Pezo da Régua, Barão da Portella (estes três, ainda havia poucos mezes que tinham sido os chefes do movimento absolutista), General Vasconcellos, Barão de Albufeira, e muitas outras pessoas da primeira sociedade.

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Parte II— 1818 a 1824                                                                         

completamente quem tinha ordenado a nossa soltura, se D. Miguel tinha mudado de opinião ou se tinha havido contra elle alguma reacção.
Nem eu nem o Conde da Taipa conhecíamos a praça de Peniche; fomos conduzidos para o lado da cidadella pelo grupo que nos rodeava, composto de amigos e de inimigos.
Os soldados do 22 e parte dos habitantes eram por nós. Os soldados do 19 encontravam também na outra parte dos habitantes muito quem os coadjuvasse na sua exaltação a favor de D. Miguel.
A nossa marcha, portanto, não era a mais segura, sendo mimoseados, durante ella, com os mesmos epithetos que tínhamos ouvido no transito de Belém para Peniche.
Passando em frente duma das egrejas, vimos entrar as Condessas de Villa Flor e de Paraty, seguidas dos presos que estavam na cidadella, que eram mais de cem, pertencentes á classe mais elevada da sociedade, muitos dos quaes eu ignorava que alli existiam, tendo vindo das prisões do Castello e do Limoeiro.
O General João de Vasconcellos acompanhava as senhoras e era novamente considerado Governador da praça de Peniche.
Era tanta a gente no templo, que tive de ficar entre as portas. Um padre, tirando do sacrário o Santíssimo Sacramento, logo o expoz, todos devotamente nos prostrámos por terra, e, depois dum Te Deum rezado, o padre abençoou-nos com o santo relicário.
No adro tivemos o gosto de nos abraçar, transparecendo no rosto de todos um verdadeiro prazer, porque tínhamos passado da morte á vida, sendo certo que, se a nossa situação não tivesse mudado, seriamos victimas, ou dum movimento revolucionário e de insubordinação, ou fusilados por ordem de D. Miguel.
Soubemos, depois, que a nossa sentença tinha sido lavrada no Palácio de Queluz, vinte e quatro horas antes do nosso livramento.
Foi no adro que tivemos conhecimento do grande successo occorrido na capital e que nos tinha trazido a liberdade. El-Rei, apesar dos esforços do Corpo diplomático e, principalmente, do Embaixador de França, não tomava nenhuma resolução para restabelecer as suas prerogativas e se desaffrontar das offensas que, diariamente, recebia do Infante, seu filho. Propunham-lhe que proclamasse ao Exercito, e recusava; que demittisse o filho, que soltasse os presos, dizendo-se-lhe que, se o não fizesse, eram todos assassinados, mas a nada se resolvia.
Por fim, (nunca soube quem teve a feliz ideia) alguém se lembrou dos precedentes de Sua Majestade e que a fuga, naquela ocasião, seria o único expediente que adotaria com agrado, e, por isso, propuseram-lhe fugir e, depois, proclamar e ordenar.
Agradou-lhe a ideia e seguiu-a....[1]




[1] Indicaram ao Rei D. João VI uma embarcação de guerra portuguesa, mas o Rei não confiava nem na Marinha nem no Exercito, por isso preferiu acolher-se numa nau Britânica, a “Windsor Castle” que estava ancorada no Tejo.

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Parte II – 1818 a 1824

Memorias do Marquês de Fronteira e d’Alorna

com o seu cavallo desferrado. Não nos podíamos prender com este pequeno incidente, e nunca mais o tornei a ver senão dias depois, no Quartel General do Regimento a que ambos pertencíamos.
Chegando a Torres Vedras e indo a casa do juiz de fora, Lisboa, hoje juiz na Relação desta cidade, grande amigo dos Condes de Villa Flor, soubemos que o General Povoas e a sua força estavam aquartelados na villa; partimos para o seu Quartel General, onde o achámos em conselho com os seus officiaes. O Conde da Taipa subiu a uma banca e leu a proclamação e a ordem que tinha recebido o Governador de Peniche para nos soltar: foi profunda a sensação no General e nos seus subordinados, mas não tiveram remédio senão cumprir e respeitar as reaes ordens.
Pela noite adeante chegaram os Condes de Villa Flor e de Paraty e muitos dos presos. O Conde da Taipa e eu, pela madrugada, sahimos para Lisboa.
Entre a Cabeça de Montachique e Loures, vi, ao longe, dois cavalleiros, a trote, marchando para nós, seguidos por uma carruagem a quatro que, com grande difficuldade, corria pela estrada que estava então no mesmo mau estado, em que hoje a vemos: reconheci meu irmão e João Evangelista.
Havia poucos mezes que eu tinha abraçado meu irmão, tendo elle escapado milagrosamente do naufrágio da Ericeira: naquelle momento, abraçava-me elle, tendo eu escapado, também milagrosamente, aos punhaes dos assassinos ou ás sanguinárias sentenças do Palácio de Queluz.
A entrevista com minha mulher e irmã não é possível descrever-se : só quem passou pelo que nós passámos, naquella triste época, pode avaliar devidamente o que sentíamos ao ver-nos
No logar de Loures encontrámos muitos parentes e amigos, e alli esperámos pelos Condes de Villa Flor e de Paraty e outros presos, seguindo, depois dum parco almoço, nós para Bemfica, e os outros para a capital.
Chegando a casa, tive o prazer de abraçar a minha querida filha, que ainda não tinha dois annos, mas que eu abraçava, pela segunda vez escapando ás garras da morte.
Carecia eu,  sobretudo, de descanso:  as affecções physicas e moraes tinham-me posto em tal estado, que não podia comigo. Era forçoso ir, no dia seguinte, beijar a mão a Sua Majestade.

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Artigo de autoria de Craveiro Costa, publicado no Boletim do Grande Oriente, às páginas 812 821, mantida a grafia da época.


A Acção da Maconaria na Independencia

Em 1817, por occasião da revolução republicana de Pernambuco, "urdida nas Lojas Maçonicas, entraram as sociedades secretas, até então de certo modo toleradas, a ser vigiadas de perto, perseguidas e dissolvidas, creando-se no Rio, para punição dos culpados, um juizo da Inconfidencia" (Oliveira Lima — D. João VI no Brasil). Em Nictheroy foi dispersada por sediciosa a Loja de que fazia parte Antonio Carlos. "A especie de terror, diz Oliveira Lima (obra cit.), produzida por esse assomo de violencia da parte do paternal governo que estava sendo o brasileiro, levou muitos maçons a denunciarem-se a si mesmos, entre elles o 1° Conde de Paraty, camarista e grande valido do rei, que delle nunca se separava." Outro maçon confesso foi o marquez de Anjeja, "que resgatou a sua falta entregando toda a prata da sua casa para servir as necessidades do Estado", pena em todo caso, menos dura do que a que havia merecido o conde que levou todo um dia de gala no Paço vestido com o habito de irmão da Ordem Terceira. 


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BAIXADA SANTISTA - LIVROS - Chronica Geral do Brazil
Uma crônica de 1886 - 1800-1883

Chronica Geral do Brazil
Alexandre José de Mello Moraes




CCIX – O Conde de Paraty, sendo solteiro, e não tendo liberdade para coisa alguma, depois que o rei se agasalhava, um indivíduo desses que a tudo se dobram para terem despachos ou por dinheiro, levou à noite uma mulher pública para o Conde se divertir, conhecida pela alcunha de Lanterna.
O rei soube disto e ficou muito insultado, que Miguel mandasse vir uma mulher pública ao paço real, e pelo quê o repreendeu asperamente.
O Conde respondeu-lhe: "- Vossa majestade não me dá tempo para procurar mulher fora do paço; que eu sou moço solteiro, tenho necessidades naturais".
A isto responde o rei: "- Pois casa-te".
O Conde tornou-lhe: "Casar-me-ei quando tiver casa e meios para sustentar mulher e filhos."
O rei contou tudo à filha d. Maria Thereza, que era a sua confidente nessas intrigas de casa, e ela, depois de o ouvir, disse-lhe: "- que o verdadeiro era o Conde casar-se com a Condessa de Barreiros, porque a pensão que ela tinha como viúva desse Conde, junta com a que recebia o Conde de Paraty, podiam viver com abastança, ainda que o Conde saísse do paço."
O rei, ouvindo o parecer da filha, dá ordem ao Conde de Paraty, para que fosse de sua parte dizer ao Conde de Vallada que ele queria que a filha Condessa do Barreiro se casasse com ele, Conde de Paraty; e bem que na mesma ocasião se dirigisse à Condessa do Barreiro e lhe fizesse a mesma comunicação.
O Conde de Vallada não pôs a menor dúvida, e deu-lhe a filha que sua majestade determinava.
O casamento efetuou-se dentro de oito dias, indo o Conde com sua mulher morar no paço de S. Christovão, por baixo dos aposentos do rei. Sua majestade mandou preparar com muito luxo os aposentos do Conde de Paraty.
O almoço, jantar e ceia eram tão profusos, como se o Conde e Paraty fosse um príncipe da casas real.
Foi este casamento, apesar da rapidez, tão bem sucedido, e se chegaram a amar tanto que foram sempre mui felizes.
A Condessa de Paraty era linda, e tinha 26 ou 27 anos, e a sua virtude era tal que, embora seu marido estivesse no maior valimento do rei, ela foi sempre um tipo de bondade. Em sua casa, que estava sempre atopetada de gente, a todos tratava bem. As pessoas que iam ao paço procuravam o Conde ou deixavam cartões de visita.
Quando a Condessa de Paraty teve o primeiro filho, foi batizado com o nome de João, que depois foi marquês de Paraty. (Nota MPC : Conde de Paraty e não Marquês…)
D. Carlota Joaquina a foi visitar ao seu quarto com as duas filhas que viviam em sua companhia.
A princesa D. Maria Thereza era sua íntima amiga e a visitava repetidas vezes. Só D. Pedro e a mulher é que lá não foram, porque o príncipe detestava o Conde de Paraty, e a todos que eram validos de seu pai. Era tal a ojeriza que D. Pedro tinha aos validos do rei, que nunca com nenhum deles falava, e lhes dava a mão a beijar sempre muito sério.
Era tal a estima que o rei tinha à Condessa de Paraty que, quando ela estava grávida ou tinha algum incômodo, não ia para a Ilha do Governador, e nem para a fazenda de Santa Cruz, só para não se separar o marido da mulher, porque em todas as viagens que o Conde fazia a Condessa o acompanhava.
CCX – Quando se batizou o filho do Conde de Paraty, que depois foi marquês (não é verdade) do mesmo título, el-rei o fez Conde depois de oito dias de nascido, sendo o rei D. João VI padrinho, e a princesa D. Maria Thereza madrinha, honra que os soberanos portugueses só faziam ao Duque de Cadaval.

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A MAÇONARIA BRASILEIRA E A POLÍTICA


Mostrou-nos a síntese histórica produzida até aqui, que a maçonaria brasileira, nos primórdios do século 19, tomou uma feição política mais acentuada, pois as características funcionais da Ordem e os compromissos de sigilo com os assuntos tratados em seus templos fechados, estimularam os defensores dos ideais republicanos a trabalharem sob os títulos das Lojas maçônicas.

Em 1815, foi fundada no Rio de Janeiro, na residência de João José Vahia, a Loja Comércio e Artes, que rapidamente adquiriu prestígio e pujança no meio da maçonaria brasileira. Existiam, na mesma ocasião, mais duas Lojas no Rio de Janeiro, a Loja Beneficência e a São João de Bragança. Faziam parte dessa última, o Marquês de Angeja e o
Conde de Paraty[1]. Quando D. João VI soube da existência da Loja S. João de Bragança, deu ordens para que fosse fechada. Ao Marquês de Angeja dedicou uma punição especial, tirou-lhe toda a prataria e o mandou sumariamente para Portugal. Quanto ao Conde de Paraty[2], que era uma espécie de secretário-escravo de S. Majestade, que sem ele não podia viver, obrigou-o a andar, durante sete dias dentro do Paço, vestido com o hábito e o cordão da Ordem de S. Francisco.








[1] 1° Conde de Paraty

[2] 1° Conde de Paraty


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AS MALUQUICES DO IMPERADOR (várias intervenções do 1° Conde de Paraty)


Paulo Setúbal

Pg 6

A BAILARINA DO TEATRO S. JOÃO
20 de março de 1816. O Rio de Janeiro amanheceu lúgubre. Tudo bruma e cinza. Bóia no
ar uma plangência estranha. Bandeiras enroladas em fumo. Dorido tanger de sinos.
Veludos negros tombando das varandas. Os coches carregados de crepes. No paço,
onde há um borborinhante vaivém de gente, os cortesáos sobem e descem as
escadarias, todos de preto, protocolarmente compungidos, num grande luto. Que houve?
Um acontecimento grave: morreu D. Maria I, a louca, mãe de D. João VI.
Na Sala dos Despachos, transformada em câmara mortuária, repousa o cadáver da
rainha. É uma velha de oitenta e dois anos. As mãos em cruz, muito longas e maceradas,
um sorriso esvoaçante gelado na boca, a morte está paramentada de grande gala.
Faísca-lhe ao peito a grã-cruz de S. Tiago. Traz a tiracolo a banda da Ordem de Cristo.
Traz a banda encarnada de Aviz. Envolve-lhe o busto, com chocante suntuosidade, o
manto real de veludo carmezim, forrado de seda branca, todo borrifado de estrelas de
ouro.
O corpo ficara em exposição.
Espera-se, apenas, que D. João VI venha beijar-lhe as mãos para franquear a câmara ao
público. D. Carlota Joaquina, essa, pela manhã, já viera com as filhas. A rainha D. Mana,
em vida, detestara D. Carlota Joaquina. D. Carlota, por sua vez, detestara a rainha. Não
se toleraram nunca. Nesse dia, por mera etiqueta, D. Carlota penetrou na câmara ardente,
beijou friamente a mão da morta, virou as costas saiu sem derramar lágrima.
Encerrou-se, depois, nos seus apartamentos. E nunca mais tornou a penetrar na câmara.
Nem sequer desceu para acompanhar o esquife até ao coche.
O pobre D. João VI, no entanto, desolara-se fundamente. Chorou como um menino, aos
borbotões. Filho incomparável, afetuosíssimo, a perda da rainha lanhara-lhe o coração
como uma espadeirada. E agora, naquele instante, Sua Majestade deve descer para a
despedida.
São três horas da tarde. Os corredores estão coalhados de palacianos. Todos esperam o
rei. Nisto, de luto fechado, os olhos muito vermelhos, cabelos em desordem, D. João
aparece no salão mortuárIo. Vem acompanhado de D. Pedro e D. Miguel. O Conde de
Parati e o Visconde de Magé, os seus validos, os dois amigos do coração, circundam-no
funereamente. Ambos choram. Na câmara-ardente, de pé, os vestidos lantejoulados de
vidrilhos negros, a Senhora Viscondessa do Real Agrado, que é camareira-mor, e D.
Margarida Sofia de Castello Branco, que é dona da câmara, velam com fundos respeitos
o corpo real. D. João entra. O Marquês de Anjeja, reposteiro-mor, retira o manto que
cobre a defunta. E então, sinceramente ferido, as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos
aquele homem gordo, bochechudo, abraça desvairadamente o cadáver da mãe. Beija-o.
Beija-o longas vezes. Beija-o repetidamente, aos soluços, acabrunhado, num grande
desespero comovido. O príncipe e o infante debruçam-se também sobre o caixão: e
ambos, com um ósculo demorado, despedem-se da avó. É tocante. Mas, o Senhor
Marquês de Aguiar, D. Fernando José de Portugal e Castro, ministro das três pastas,
suplica ao rei que se recolha. Os validos também suplicam-lhe que se poupe a tanta dor.
D. João, que chora sempre, deixa a câmara mortuária. Retira-se para os seus aposentos.
Uma angústia cruciante rasga-lhe a alma: é a única dor sincera, a única chaga viva que
abriu a morte da louca.

* * * Pg 7-8-9

Oito horas da noite. Trancado no seu quarto, muito inquieto, o príncipe D. Pedro passeia
agitadamente. Tudo aquilo, aqueles lutos, aqueles cortesões fúnebres, aqueles coches
recobertos de crepe, revira-lhe azedamente os nervos. De vez em quando, enfiando o
olhar pela janela, Sua Alteza vê os altos dignitários chegarem para o beija-mão. É o
Cardeal Capelli, núncio apostólico, com as suas sedas escarlates; é Lorde Strangford, o ministro inglês, de casaca negra, luvas, cartola felpuda de palmo e meio; é o Conde de
Cavaleiros, mordomo-mor, com o seu largo fitão a tiracolo e a Ordem de Cristo vermelhejando na lapela; é o...
E D. Pedro, aquele belo príncipe de dezassete anos, moreno, olhos muito negros e muito
românticos, aquele moço garboso, aquele moço doidivanas e estúrdio, que enche a corte
com os seus estouvamentos, D. Pedro é talvez o único, na hora fúnebre, que não se
interessa por aquelas pompas, por aqueles crepes, aqueles lutos. O seu espirito está
longe dali. A sua ânsia é outra. Punge-lhe um desejo estranho. Ferreteia-lhe uma vontade
louca de voar, de deixar o Paço, de fugir àquelas tristezas, de correr para um ninho
amado... Para um ninho que o espera com carícias entontecedoras. E D. Pedro, dentro
dos seus aposentos, numa irascibilidade mórbida, anda, fuma, agita-se. Goteja-lhe no
cérebro um pensamento só. É uma idéia fixa, enrodilhante. No desvario duma paixão
furiosa, paixão de adolescente, D. Pedro não pensa noutra coisa senão no seu amor. Não
aspira outra coisa a não ser o saciar aquela tortura faminta de amar e ser amado. E
sozinho, naquela noite lúgubre, o príncipe sonha com ela... E arde por ela... Ela por toda
parte! De repente, num assomo, D. Pedro bate palmas. O criado ergue o reposteiro. É
Plácido Pereira de Abreu: É o antigo barbeiro do Paço. É a pessoa que o príncipe mais
estima na corte. E D. Pedro, ao vê-lo, ordena-lhe em voz baixa:
- A minha capa negra e o meu sombreiro de abas largas.
Plácido sorri. E o príncipe:
- Você já sabe aonde vou, não sabe?
- Sei! Vossa Alteza vai para o largo do Rocio.
- Vou! Não posso mais. Aquela mulher é a minha paixão...
Mas, é bom que Vossa Alteza se acautele, tornou o criado; é bom não sair pela frente do
Paço. Há muito coche, muito escudeiro, muita gente graúda que vem chegando. Vossa
Alteza pode topar com muito mexeriqueiro. É mais prudente que Vossa Alteza saia pelo
alçapão.
- Você tem razão, Plácido. Traga-me a capa e abra o alçapão. Plácido trouxe a capa. D.
Pedro enrodilhou-se profundamente nela. Enfiou o chapéu de abas largas, enterrou-o na
cabeça, quebrou-o nos olhos. O criado, depois de vestir o amo, recuou uma pequena
mesa que havia no meio do aposento. Ergueu o tapete. Depois, com jeito, levantou um
alçapão disfarçado no soalho. D. Pedro meteu-se por ele. Pulou no andar térreo. Era
exatamente a "Sala dos Pássaros". Dai, abrindo as portas do fundo, D. Pedro precipitouse
na rua. (1)
De preto, enrodilhado - na capa negra, o vasto chapéu mergulhado até às orelhas, o vulto
misterioso esgueirou-se pelos becos escuros do velho Rio. Um ou outro lampião de
azeite. Escuridão espessa na cidadezinha suja. De vez em quando, passava um capoeira
assobiando. Tudo mais silêncio. O príncipe alcançou o largo do Rocio. Estacou diante
dum sobrado. Bateu à porta. Uma luz súbita jorrou lá dentro. E logo, na sacada, uma voz
sonora, muito orvalhada, gritou do alto:
- "Qui est-lá?"
E o príncipe, cá em baixo, com um sussurro:
- Sou eu! Abra...
Instantes depois, no sobrado do Rocio, D. Pedro, arremessando a capa, atirava-se
perdidamente nos braços duma linda moça. A rapariga, fina e leve, ria-se daquela
maluquice em noite tão fúnebre...
Era a Noemi. Era a famosa bailarina do Teatro S. João.
Foi numa noite de gala, aniversário do príncipe regente, que D. Pedro viu no palco, pela
primeira vez, a bailarina entontecedora. Era uma francesinha de matar. Uma boneca de
luxo, toda pluma frágil como um bibelô. E tão loira! E tão fresca E dona duns olhos tão
grandes, tão liricamente azuis! D. Pedro era um príncipe impetuoso. Tinha dezessete
anos, o coração sôfrego. A bailarina, a criatura pequenina e doce, fascinou-o doidamente.
D. Pedro atirou-se às tontas na aventura. Noemi foi o seu primeiro amor. Foi a loucura da
sua adolescência. O moço Bragança desatinou-se. Fez tudo o que podia fazer, aos
dezessete anos, um príncipe de sangue, herdeiro do trono, desbragado e estróina. Viveu
com a rapariga uma vida de romance, boêmia, ensartado de noitadas febrentas, com
serenatas de violão e de lundus. Cobriu-a de sedas. Recamou-a de pérolas. Lantejolou-a
de pedrarias magníficas. Foi um estonteamento! A aventura custou-lhe uma fortuna.
Um dia, porém, o Plácido veio despertá-lo bruscamente daquela embriaguez de amor. O
criado falou com severidade:
- É preciso liquidar as dividas, príncipe! Vossa Alteza está encalacrado. A casa Phillips
anda reclamando o pagamento... A coisa já vai longe!
D. Pedro, com indiferença:
- Quanto é que eu estou devendo, Plácido?
- É fácil dizer, Alteza.
Sacou um caderninho do bolso e começou a fazer as contas:
- Casa Phillips... joalheiro do Paço... ourives da Rua do Piolho... modista da Rua do
Ouvidor... modista da Ajuda... perfumista... florista... luveiro... dinheiro fornecido... Tudo
somado, como Vossa Alteza vê, faz onze contos novecentos e oitenta. Digamos doze
contos.
- Doze contos?
E, D. Pedro, estuporado, deu um salto da cadeira:
- Doze contos?
- Doze contos! E é preciso pagar. Os fornecedores vivem atrás de mim. Eu sempre a
adiar...
- Diabo, exclamou o moço num esbraseamento, pondo ás mãos na cabeça; diabo! Onde
vou eu achar tanto dinheiro?
D. Pedro recebia um conto de réis por mês. Aquela bagatela mal dava para a tença dos
seus moços da câmara, para pagar os seus criados, fazer as suas esmolas, comprar os
seus cavalos. Mas, D. João era sovina. Um unhas-de-fome. Não havia meio de sair do
conto de réis. Por isso, diante da divida, diante daqueles doze contos de réis, o príncipe
desnorteou-se. Não sabia como desentalar-se. O Plácido começou a sugerir planos:
- Vossa Alteza procure o Targini, tesoureiro de el-Rei, conte o que sucedeu, peça o
dinheiro.
- Está maluco, Plácido? O Targini faz um barulho de cair o céu! Arrebenta o escândalo por
aí. Meu pai enlouquece...
- Neste caso, antes de falar ao Targini, Vossa Alteza fale com um valido do Senhor D.
João. O Visconde de Magé ou o Conde de Parati. Vossa Alteza expõe o que há, pinta
claramente o aperto, pede aos validos que convençam D. João a fornecer o dinheiro.
D. Pedro detestava os validos do pai. Nunca lhes dirigia a palavra. Achava-os muito tolos
e muito carolas. Dava-lhes a mão a beijar secamente. Nunca teve um sorriso para eles.
Eis porque, sem vacilar, exclamou com vivacidade:
- Deus que me guarde! Eu prefiro morrer a pedir um favor àqueles beatões. Aquilo é gente
ruim. Uns pestes! Vamos bater noutra porta...
E começaram ambos, o amo e o criado, a engendrar um meio de pagar as dividas. O
Plácido lembrou timidamente:
- O Pilotinho, se Vossa Alteza quisesse, emprestaria o dinheiro...
- O Pilotinho?
- Sim, o Pilotinho. Eu vou sempre molhar a goela, na bodega do homem; e o homem,
cada vez, não se esquece de me dizer: "oh! Plácido, vê se arranjas um jeitinho de eu me
encaixar nas boas graças do Paço. Tu és tão amigo lá do Príncipe..." Ora, como Vossa
Alteza sabe, o Pilotinho é rico. Uma palavra de Vossa Alteza - zás - estão aqui os doze
contos de réis...
D. Pedro era um estróina. Um doidivanas completo. Não refletiu um instante no disparate
daquele alvitre. Pedir emprestado dinheiro ao Pilotinho era para D. Pedro tão natural
como pedir emprestado a D. João VI. E o príncipe agarrou-se à idéia:
- Bravos! Não há que discutir. Corra a casa do Pilotinho e traga-me aqui o homem com os
doze contos.
O Plácido saiu.
Joaquim Antônio Alves, o Pilotinho, era um pé-de-chumbo rico, bodegueiro na rua dos
Barbonos. O dinheiro dera-lhe prestígio. E o homem andava faminto por doirar aquele
prestígio com amizades vistosas, que o honrassem. O Plácido contou-lhe o que havia.
Transmitiu-lhe o pedido do príncipe. O bodegueiro abriu dois olhos fuzilantes! Correu para
dentro, vasculhou uma empoeiradíssima arca, empacotou um monte de notas, veio num
aturdimento para o Paço. O Príncipe, ao vê-lo entrar, recebeu-o com bulhento alvoroço.
Pegou no dinheiro, fechou-o no contador, virou-se esfuziante para o pé-de-chumbo:
- Você é amigo, Pilotinho! Você é um grande amigo! Tome lá...
E abraçou-o. Abraçou-o com uma larga ternura comovida. O Pilotinho, o tosco
bodegueiro, para receber do herdeiro do trono um abraço assim tão quente, tão apertado,
não emprestaria apenas aqueles misérrimos doze contos: daria ao príncipe toda a sua
fortuna...

Pg 10-11
II
A aclamação de D. João VI foi um deslumbramento. A mais soberba festa que a Colônia
vira até então. Aquele rei burguês, aquele homem bonacheirão e gordo, empenhara-se
com alma, rasgadamente, para que seu grande dia tivesse um brilho único, estonteante,
Não houve poupança. Targini. o tesoureiro de el-Rei, abriu os cofres atulhados de barras
de ouro E foi um gastar profuso, um enfeitar, um cobrir de luxos desmedidos aquele pobre
Rio de 1816.
São três horas da tarde. A Varanda Real cintila. É um pavilhão imenso, suntuosíssimo,
que João da Silva Muniz, arquiteto do Paço, sob o olhar vigilante do Barão do Rio Seco,
construíra exclusivamente para o ato supremo. Faiscam dentro dele atavios régios. Toda
a aristocracia da corte, a mais alta, a de sangue mais limpo, borborinha por entre os
capitéis dourados. Nas tribunas, de onde jorra uma crua faiscação de jóias, papagueiam
risonhamente as damas, os decotes branquejando entre rendas e gazes, os altos trepamoleques
de ouro cravados nos cabelos em coque. Lá está na tribuna de honra, que é de
seda rosa, toda broslada de arminhos, a Senhora D. Carlota Joaquina, muito empoada,
pêlos ruivos na cara áspera, sentada triunfalmente entre as quatro princesinhas.
De repente, pelo ar festivo, rompem as charamelas. A corte inteira, ao toque eletrizante,
ergue-se com ânsia. Os olhares todos cravam-se ávidos na entrada. O Porteiro Real
escancara as portas. E o cortejo magnífico surge. Que belo! À frente, com as grossas
maças de prata ao ombro, vêm os Porteiros da Cana. Depois, o Rei-d'Armas, com o seu
vistoso capacete empenachado. Seguem-se os dois Arautos, com as longas trompas de
ouro. Finalmente os Passavantes cobertos de ferro, as couraças de escamas refulgindo.
O Alferes-Mor empunha a Bandeira Real enrolada na haste. E o séquito passa. São os
Moços da Câmara, são os Moços Fidalgos, são os Grandes do Reino, são os Bispos, é
Tomás Antônio Vila nova Portugal, Monistro e Secretário de Estado.
Enfim, o Rei.
Sua Majestade tem à direita o Príncipe D. Pedro, herdeiro do trono, descoberto, um largo
fitão a tira-colo. À esquerda, servindo de condestável, o Infante D. Miguel trazendo na
mão um estoque desembainhado. E D. João VI entra. A Varanda Real freme, sacudida.
Lá fora, uivando, O povo delira. E é uma atroada louca, ribombos de canhão, morteiros,
sinos bimbalhantes, charangas enchendo os ares de marchas estrepitosas. O Rei está
soberbo. É a primeira vez que os vassalos o vêem com todas as galas da realeza.
Faiscam-lhe ao peito as insígnias de suas ordens. Pende-lhe do pescoço o colar do
Tosão de Ouro. Tomba-lhe dos ombros, com a mais grandiosa magnificência, o manto
real. É riquíssimo, de veludo carmezim, bordado a fios de ouro, semeado de castelos e
quilhas, apresilhado por dois imensos broches de diamantes que fuzilam,
fulgurantissimos. O Conde de Parati, no oficio de camareiro-mor, carrega a cauda do
manto. Sua Majestade avança rutilando até a um alto estrado. Ai, sob largo dossel de
damasco, está armado o trono real.
O Marquês de Castelo Melhor, reposteiro-mor, retira o damasco que o cobre. O Conde de
Parati entrega a Sua Majestade o cetro. D. João senta-se. Os cortesãos, de acordo com
seus cargos, espraiam-se pela Varanda. Ao lado do trono, atendendo o Rei, ficam o
Marquês de Torres Novas e D. Nuno José de Sousa Manuel, gentis-homens honorários.
Em frente, hirto e solene, o Ministro do Reino. Depois, o Marquês de Anjeja, que serve de
mordomo-mor. Vêm após os seis Bispos. Depois, os Grandes do Reino. Depois, os
Titulares. Depois, o Senado da Câmara. Depois, a Mesa do Desembargo do Paço.
Depois, a Casa da Suplicação. Depois...
Há um instante de silêncio. O Ministro de Estado faz um sinal ao Rei-d'Armas. O
Rei~d'Armas avança até ao meio do Salão. Curva-se diante de Luís José de Carvalho e
Melo, ilustríssimo Desembargador do Paço. O Desembargador levanta-se, atravessa a
Varanda, posta-se em frente ao Monarca. O Rei-d'Armas brada com retumbância:
- Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos...
E Carvalho de Meio, diante do trono, sob um silêncio grave, declama a fala do protocolo.
É rápida. Meia dúzia de frases rituais. E logo, terminada a arenga, o Marquês de Castelo
Melhor coloca diante de Sua Majestade uma pequena mesa recoberta de veludo verde. É
a hora do "Juramento Real". Momento supremo. D. José Caetano, o Bispo-Capelão,
recebe do mestre de cerimônias o missal e o crucifixo. Deposita-os sobre a mesa.
Ajoelha-se. O Bispo de Azoto, Prelado de Goiás, e o Bispo de Leontópolis, Prelado de
Moçambique, testemunhas do grande ato, ajoelham-se também. O ministro do Reino,
nesse momento, curva-se diante do trono: Sua Excelência suplica a el-Rei que jure. D.
João levanta-se. Passa o cetro para a mão esquerda. Ajoelha-se numa vasta almofada
acairelada de ouro. Estende a mão direita sobre o missal e o crucifixo. E solene, com uma
lentidão majestosa, debaixo do olhar sôfrego da corte, el-Rei presta o juramento sagrado:
- Eu, João, Rei de Portugal, do Brasil, dos Algarves, juro...
E repete, palavra por palavra, a fórmula sacramental que o Ministro do Reino vai lendo em
alta voz. Está acabado o juramento. D. João torna a sentar-se no trono: está
definitivamente Rei.
Principia, então, com as mais severas etiquetas, uma outra cerimônia. Cerimônia das
mais sérias e significativas: é o juramento de "Preito e Vassalagem a el-Rei". O primeiro
que jura é o Príncipe Herdeiro. Em seguida, o Infante D. Miguel. Depois, segundo as suas
hierarquias, o Ministro do Reino, os Bispos, os Desembargadores, os Grandes, os
Titulares, a Nobreza. D. João, do alto do trono, recebe com um sorriso o juramento dos
cortesãos. Quando o desfile finda, cessado aquele burburinhar de gente, o Alferes-Mor
desenrola a bandeira real. E festivamente, em altas vozes:
- Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Senhor D. João VI, Nosso Senhor!
Toda a corte prorrompe num brado só, entusiasticamente:
- Real, Real, Real!
E estrugem as músicas, largo vozerio, Há uma alegria desordenada pela Varanda. O
Alferes-Mor, com a bandeira desenrolada, grIta em meio do tumulto:
- Alas! Alas!
Todos abrem alas. O Alferes-Mor embarafusta-se por entre as alas abertas. Vão-lhe à
frente os Porteiros da Cana, o Rei-d'Armas, os Arautos, os Passavantes. E o préstito a
passo lento, aproxima-se do balcão que dá para o Terreiro do Paço. Ali, na sacada, diante
de todo o povo, o Rei-d'Armas brada retumbante:
- Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos.,. Há um relâmpago de silêncio. O Alferes-Mor
lança a bandeira real ao vento. E com ufania, a pulmões plenos, berra para a massa:
- Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Rei D. João VI, Nosso Senhor!
Que delírio! O povo desanda em gritos. Atroa o Terreiro do Paço uma algazarra bravia,
Repiques de sinos sacodem o ar As fortalezas estrondam. Fogos de artifício japonizam o
céu.
Debaixo da baruheira, rindo-se, o ar de glória e festa, D. J0ão ergue-se E todo aquele
bando suntuoso ondeia. Lá vai a caminho da Real Capela. Aí, sobre um troneto, rutilando
de luzes, há. uma relíquia do Santo-Lenho. El-Rei ajoelha-se. A corte inteira ajoelha-se.
Sua Majestade beija a relíquia. Levanta-se. E enfim, majestosamente, senta-se no trono
real, armado ao lado do altar. Rompe, no coro, a música de Marcos Portugal. Começa o
'Te-Deum"...

Pg 12-13

* * *
A Capela Real abriu-se para o povo. Grossas ondadas de gente inundaram subitamente a
nave. A igreja fervilhou. Não cabia dentro dela um alfinete. Todo o mundo queria ver o
Rei!
Lá de cima, do alto duma tribuna, o Conde de Parati contemplava risonhamente aquele
burburinho. De repente, com espanto, o cortesão deu de chofre com uma rapariga loira,
muito linda, que cravava olhos sôfregos no trono. Era a Noemi, a bailarina do Teatro São
João. A moça sorria. O Conde de Parati virou-se rápido: ao lado do trono, desempenado e
belo, D. Pedro fitava impavidamente a moça. E, por seu turno, diante da Corte, acintoso e
chocante, mandava-lhe um sorriso escandaloso. O Conde de Parati, acotovelando o
Visconde de Magé, murmurou baixinho:
- Veja aquilo, Visconde!
- É a paixão, meu amigo! É a paixão que faz daquelas coisas...
E o Magé, apagando a voz, num cicio:
- Vossa Excelência já sabe o resultado desses amores, não sabe?
- O resultado desses amores? Não sei...
- Que diz?
E misterioso, bem ao ouvido do amigo:
- Saiba, meu Caro Parati, que a francesinha vai ser mãe...
O Conde de Parati olhou pasmado para o Visconde de Magé. Os seus olhos fuzilaram:
- Vossa Excelência está certo disso?
- Absolutamente certo! Contou-me o Plácido. E o Plácido, como Vossa Excelência bem
sabe, é o amigo mais íntimo do príncipe...
O Conde de Parati calou-se. Aquilo era muito sério. O escândalo mais atordoante que
poderia estourar aos ouvidos de D. João. É que agora, exatamente naquele momento, el-
Rei tratava do casamento do filho. O Marquês de Marialva já andava pela Europa a
sondar as casas reinantes. Parece que a da Áustria... Imagine-se um pouco se D. Pedro,
aquele estúrdio, aquele príncipe estourado, perdido de paixão como andava, cometesse a
loucura de casar-se às escondidas com a bailarina. Que complicação! E o Conde de
Parati, muito apreensivo:
- Essa aventura do príncipe, meu caro Visconde, pode ter conseqü.ncias brutais. É
preciso que D. João saiba de tudo, não acha?
- É preciso! Vossa Excelência presta a el-Rei um altíssimo serviço, contando o que se
passa. É um caso grave.
- Tem razão, Visconde! É um caso grave. Amanhã, el-Rei saberá de tudo...
No outro dia, ainda nos seus aposentos, D. João ouviu do Conde de Parati os pormenores
das maluquices do príncipe. O Monarca arregalava os olhos, estuporado:
- Doze contos? Pois o príncipe já gastou doze contos nisso?
- Doze contos, Majestade. Dinheiro esse que pediu emprestado ao Pilotinho.
- Ao Pilotinho? O bodegueiro da Rua dos Barbonos? Mas, é incrível. Esse rapaz é um
louco! Esse rapaz me mata de vergonha! Veja que papel, meu amigo! Pedir dinheiro ao
Pilotinho! Um príncipe!
E assim, trancados nos aposentos, el-Rei e o valido conversaram longamente. Que é que
decidiram? Ninguém o soube. Apenas, ao sair, o Conde de Parati afirmou:
- Vou providenciar os papéis para hoje mesmo. Amanhã, quando a corveta partir, levará
os dois...
E saiu. Decerto, o Conde de Parati preparou os papéis. Pois, no dia seguinte, seriam onze
horas, o íntimo de D. João apareceu no Largo do Rocio. A bailarina espantou-se
imensamente:
- Vossa Excelência, Senhor Conde?
- Eu mesmo, Senhora Noemi. El-Rei mandou-me aqui para pedir que Vossa-Mercê vá
comigo até ao Paço.
- El-Rei?
- El-Rei...
A ordem era estranha. Havia nela qualquer coisa de mistério. Mas, que fazer? A
francesinha não pôde recusar. Vestiu às pressas o seu vestido rodado, cor de pinhão,
enfiou as luvas, pôs o chapeuzinho de pluma branca. E saiu saltitante, pequenina,
pisando leve como um passarinho. D. João recebeu-a com afabilidade. Fez-lhe um
agradinho paternal no queixo. E logo, sem mais rodeios, esfregando os dedos, com o seu
riso amarelo:
- Mandei chamá-la, minha filha, para dar-lhe uma ordem. Uma ordem que é necessário
ser cumprida à risca: a menina tem de retirar-se hoje mesmo da Corte...
- Eu?
- Sim, minha filha; Vossa-Mercê! Mas, eu não quero que a menina, depois dessa
aventurazinha que teve com o príncipe, se vá embora ao desamparo, sem dinheiro, sem
ter pessoa alguma que a ajude. Longe de mim tal coisa! Eu resolvi, por isso, que Vossa-
Mercê se case. Dou-lhe para marido o tenente da minha guarda. É um rapagão bonito, um
belo moço da ilha Terceira. Nomeei-o para um ofício de Pernambuco. Um oficio de
primeira ordem, que rende oitocentos mil réis...
A moça ouvia aparvalhada. Aquilo esmagava-a. Não sabia o que dizer. E D. João
continuava, esfregando os dedos, rindo aquele risinho amarelo, muito dele:
- Já dei ordem para que o meu Tesoureiro leve a bordo a quantia de seis contos de réis. É
uma ajudazinha para o enxoval do bebê que vai nascer. Ordenei mais que entregue a
Vossa-Mercê cinco contos. Isso é uma lembrança minha: um dote para Vossa-Mercê. A
Rainha, ao saber do caso, também mostrou muita simpatia pela menina. Mandou, por sua
vez, que lhe desse um conto de réis. E ordenou ao guarda-jóias que lhe entregue a
Vossa-Mercê um anel de ouro, com uma bonita pedra. É para Vossa Mercê depositar
esse mimo no berço do seu filhinho, no dia em que for batizado...
Noemi compreendeu tudo. Sentiu bem a inutilidade de qualquer oposição. Era baldado
resistir. El-Rei podia fazer tudo o que quisesse. A bailarina viu nítida a sua catástrofe.
Fincou soturnamente os olhos no chão; e as lágrimas, em fios, começaram a despencarlhe
pelas faces...
- Os papéis do casamento já estão prontos, continuou el-Rei. Vamos realizá-lo, menina.
E virando-se para o Conde de Parati:
Chame o padre, Conde. E traga também o noivo. Estão ambos no Salão dos
Despachos...
Nessa tarde, quando a corveta largou ferro, a bailarina do Teatro S. João precipitou-se
como louca no seu beliche. Atirou-se entre os almofadões do leito. E ai, durante toda a
noite, abafando os soluços, a rapariga chorou num desespero.
Que lua de mel!

* * *

D. João acabara de jantar. Comera os seus três franguinhos. Comera-os com os dedos,
enlambuzando-se, atirando os ossos ao chão. O infante D. Miguel correu ao aparador e
trouxe a bacia com o jarro de prata. O príncipe D. Pedro ergueu o jarro, despejou a água,
ofereceu a toalha ao Rei. D. João lavou-se, enxugou as mãos, fez o sinal da cruz. Depois,
feliz e bonacheirão, enlaçou o braço no braço do Conde Parati:
- Vamos dar graças a Deus, Conde. E partiram para o oratório.
D. Pedro, livre do protocolo, correu ansioso ao seu apartamento. Que alvoroço! O coração
batia-lhe descompassado. Era o momento de partir para o Largo do Rócio...
Naquela tarde, porém, mal o príncipe entrou, o Plácido, assustadíssimo, surgiu como um
fantasma diante dele. D. Pedro estranhou aquela fúria:
- Que é isso?
- Vossa Alteza ainda não sabe?
- Você está louco, homem! Não sabe o quê?
- Vossa Alteza não sabe o que aconteceu a Noemi?
D. Pedro agarrou forte nos ombros do criado. Sacudiu-o violentamente:
- À Noemi?
- Pois Vossa Alteza não sabe? A menina partiu hoje para Pernambuco...
- Para Pernambuco?
- Sim, Alteza. Na corveta que acaba de sair do porto. Imagine Vossa Alteza o que
aconteceu: D. João obrigou a pobre rapariga a casar-se com o tenente da Guarda. Deulhe
cinco contos de dote...
E desembuchou tudo. D. Pedro fremia. Os seus nervos estalavam. Os olhos ardiam-lhe,
febrentos. Aquilo desordenara-o. Era doloroso como um punhal que lhe entrasse pelas
carnes. Eis que o príncipe, no seu atordoamento, começa a tremer. De repente, sem
saber como, uma nuvem passa-lhe pelos olhos. As órbitas dilatam-se-lhe. Uma súbita
rigidez penetra-lhe os músculos. A boca espumeja-lhe, sangrenta. E D. Pedro desaba
pesadamente no chão.
Era o ataque.

Pg 25

* * *
Aquela assiduidade ao Cauper, aqueles passeios pela chácara, aqueles mimos e
galantarias para com as moças, foram um espinho na alma da princesa. D. Leopoldina
começou a sofrer. O ciúme, o tal "green ey'd monster" de Shakespeare, cravou-lhe a
primeira mordida no coração. Tornou-se-lhe um suplício acompanhar o marido ao almoço
dos Caupers. Aquilo doía-lhe. Aquilo infernizava-lhe a lua de mel. E D. Leopoldina não se
conteve. Certa manhã, ainda nos seus aposentos, D. João recebeu a visita da nora. A
princesa vinha nervosa, estranhamente inquieta. Entrou. Atirou-se aos pés do monarca,
soluçando. El-Rei ergueu-a carinhosamente. E condoído, muito solicito:
- Que há, minha filha? Que há?
D. Leopoldina contou-lhe tudo. Os almoços, as intimidades, os passeios pela chácara, o
estribilho de todos os dias:
- Oh, Cauper, fica-te por aí com a princesa: eu vou me divertir um bocado com as tuas
filhas.
D. João ouviu. Consolou ternamente a desesperada austríaca. Fez-lhe um agradozinho
no queixo:
- Eu sei de tudo, minha filha! De tudo! O Sousa Lobato já me pôs a par dessas
leviandades do Pedro. Aquele rapaz é assim mesmo, minha filha: um desmiolado! Mas
deixa o caso por minha conta. Eu serei por ti.

Beijou a nora, fez-lhe outro agradozinho, mandou chamar ali mesmo o Visconde
(n.d.r. Conde) de Parati, o valido, a fim de resolverem aquele caso de família.


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